sábado, 29 de agosto de 2009

A mentira é uma verdade de cabeça pra baixo

Guardou o envelope no bolsinho da mala e empurrou novamente para debaixo da cama. O marido chegaria por volta das oito da noite. Ela tinha combinado com o cunhado para atrasá-lo um pouco. Terminou de servir o café d manhã para as crianças e depois as deixou na escola, contrariadas, pois hoje era dia de surpresa. Em casa ligou para a confeitaria certificando-se de que o bolo chegaria no horário. Deu as últimas ordens para a empregada e foi escolher a roupa que usaria. Marcou hora no salão. Queria escova, mão, pé e limpeza de pele. Foi até a sala e colocou Marisa Monte pra tocar. Preparou uma dose de Campari. Tirou as sandálias e sentou no sofá. Olhava os detalhes da casa. Retratos de felicidade espalhados. Deu uma golada na bebida e lembrou-se de uma frase que havia lido em algum lugar: A mentira é uma verdade de cabeça pra baixo. Sorriu.
Após sair do salão, toda senhora de si, cabeça erguida, postura arqueada, buscou os filhos e foi se preparar. Hoje era dia de surpresa.
Na hora combinada recepcionou os amigos. Caminhava tranquila e segura entre todos. Inteligente. Saia-se bem desde os assuntos mais filosóficos até os mais banais. O relógio já marcava oito horas. O barulho do carro encostando. É a senha para que as luzes se apaguem e todos se escondam e façam silêncio. Vamos lá, no três! e quando a porta se abre: vela acesa e um eufórico Parabéns pra você! O marido fica emocionado. O coração vai à boca. A esposa surge linda e insinuante e solta um Happy Birthday a la Marylin Monroe. Coloca os braços em volta do pescoço dele e o beija calorosamente.
A festa caminha com todos divertindo-se e sendo bem servidos. Os filhos brincando com outros filhos. Seu marido sentindo-se a pessoa mais feliz do mundo. E a certa altura a casa já está vazia. Todos foram embora. Os filhos dormiam no sofá e cada um pegou uma das crianças e as levou no colo até o quarto. Depois, foram ávidos para a cama. Beijaram-se. Lamberam-se. Chuparam-se. Ficaram saciados. Ela abraçou seu homem e afagou seus cabelos até que ele pegasse no sono. Levantou e sem tomar banho, trocou de roupa. Pegou a mala que estava embaixo da cama. Saiu do quarto em silêncio, sem deixar a porta bater. Foi ver os filhos, os olhou e respirou aliviada, tranquila. Na sala pegou o telefone e pediu um táxi. Desceu o curto lance de escada. Abriu a porta da casa e depois a do carro. Antes de entrar, olhou com ternura para a fachada do que foi seu lar por mais de uma década. Sorriu e disse para si mesma: Foda-se!